2022: Inteligência Artificial e o debate no Brasil
O ano de 2022 foi marcado pelo aprofundamento do debate sobre regulação do uso da inteligência artificial (IA) no Brasil. Isso faz do país mais um dentro de uma conjuntura internacional de debate sobre o tema, como é o caso da União Europeia. Aqui, o centro disso foi o Senado Federal, que instalou, no início do ano, uma comissão formada por juristas que, ao longo de meses, realizou audiências públicas com inúmeros especialistas, ouviu setores da sociedade e, ao fim, entregou um anteprojeto de lei que passará a tramitar na Casa. A retrospectiva desse trabalho você encontra logo abaixo.
Em seguida, a Descodificado tem o prazer de receber André Fernandes, advogado, diretor e fundador do IP.rec, o Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia de Recifica, especialista em IA e que acompanhou de perto os trabalhos no Senado. Fernandes faz um balanço de 2022 e aponta expectativas para o próximo ano.
Por fim, aproveitando o início do período do recesso, iniciamos a seção Vero Indica, com sugestões culturais para seu final de ano. Aproveite!
Comissão de Juristas no Senado Federal se debruçou sobre a regulação do uso da Inteligência Artificial no Brasil
No final do mês de março, foi instalada no Senado Federal a Comissão de Juristas responsável pela elaboração de uma proposta de regulação do uso da Inteligência Artificial (CJSUBIA) no Brasil a partir dos PLs 5051/2019, 21/20 e 872/2021. A comissão foi presidida pelo jurista Ricardo Cueva, do Superior Tribunal de Justiça (STJ,) e esteve sob a relatoria de Laura Schertel, advogada e professora. A instalação da Comissão sinalizou, já no começo do ano, a força desse debate global também no âmbito nacional, o que deve continuar em alta para 2023.
Inicialmente, a composição da comissão foi alvo de críticas pela sociedade civil, que observou a baixa diversidade dos seus 18 integrantes, principalmente em questões étnico-raciais e regionais, questionando também a restrição ao formato restrito a juristas. Na sequência, no entanto, os trabalhos efetuados pela Comissão dialogaram com parte dessas demandas, com a realização de audiências públicas e a abertura para o recebimento de contribuições.
Diante da complexidade dos temas, a Comissão foi dividida em duas fases: a primeira, composta por 4 audiências públicas, se dedicou a debater 9 temas com a presença multissetorial e plural de especialistas; a segunda, foi organizada em 5 subgrupos de trabalho temáticos para aprofundamento dos principais temas discutidos na primeira fase e posterior criação de capítulos para o anteprojeto.
Ao todo, foram 19 painéis que, dentre outros temas, debateram conceitos, vieses e riscos inerentes à tecnologia e os possíveis métodos de correção; sistemas de responsabilização e questões econômico-sociais.
A 4ª Reunião Ordinária da Comissão, por exemplo, realizada no dia 12 de maio, trouxe o tema da discriminação em um dos seus painéis e contou com a presença do professor e advogado Silvio Almeida, que destacou a importância de existirem ações que visem diminuir ou eliminar o aspecto discriminatório no processo de criação e uso da inteligência artificial.
No início de dezembro, a Comissão aprovou por unanimidade o relatório final e, na semana seguinte à aprovação, publicou o documento, entregando-o a Rodrigo Pacheco (PSD/MG), presidente do Senado Federal, casa que dará prosseguimento no debate e tramitação da matéria.
Dentre os grupos temáticos criados, o grupo de conceitos, fundamentos e princípios estabeleceu definições importantes para a regulação de inteligência artificial, como o conceito de “sistema de inteligência artificial”, “discriminação” e “discriminação indireta”, sendo os dois últimos, pontos de grande relevância para a aplicação da IA.
Além disso, um dos capítulos existentes na minuta elaborada, fala sobre a categorização dos riscos, tema tratado aqui na Descodificado.
O trabalho feito pela comissão foi muito importante para que no próximo ano o assunto seja aprofundado a partir do que já foi construído até aqui. O debate acerca desse tema é primordial para que os impactos da tecnologia não esbarrem em questões de direitos humanos, como os possíveis vieses discriminatórios existentes no reconhecimento facial. Sobre o assunto, importante lembrar da campanha da sociedade civil, lançada em 2022, #TireMeuRostoDaSuaMira que reivindica a proibição do uso dessa ferramenta para fins de segurança pública.
André Fernandes, Fundador e Diretor do IP.rec - Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia de Recife. Foto André
Como você analisa o relatório final apresentado pela Comissão de Juristas responsável por subsidiar a elaboração de um substitutivo sobre inteligência artificial? O trabalho da Comissão sai com um resultado positivo?
O relatório final da comissão de juristas do Senado vem como um avanço de várias ordens: ele apresenta temas que não foram tratados anteriormente e que são necessários a uma boa regulação da inteligência artificial no país, como o debate sobre direitos, gradação de riscos, necessidade de boas práticas e guias internos e todo um framework para compliance na matéria. O trabalho da comissão, em comparação com o processo da Câmara, também foi mais aberto e participativo, dando matizes importantes a um debate que parecia ser simples - e tal simplicidade era um erro, um falseamento. Entretanto, o texto apresentado carece de muitas falhas que só serão resolvidas no debate público, com devido tempo para maturação: o texto tem inconsistências lógico-conceituais flagrantes, um calcanhar de aquiles para um texto legal; há falta de instâncias de participação popular nas atribuições da futura autoridade a ser criada pelo executivo; o regime de responsabilidade é confuso, equivocado, deu grandes voltas para voltar pro ponto inicial do PL n. 21/20.
Como você vê a posição do Brasil no debate sobre o uso da Inteligência Artificial? Em quais contextos pode se dizer que a regulação dessa tecnologia é essencial?
O Brasil passa a se posicionar, especialmente na modificação da conjuntura política, como um importante ator no debate. As razões não são atreladas, necessariamente, a esta mudança. O Brasil já possuía políticas relevantes de dados abertos, dados públicos e de regulação geral da tecnologia, possui também, desde antes do Marco Legal de IA, um data lake considerável na justiça e em outros setores, o que pode mobilizar e ajudar a desenvolver o setor. Mas o desafio regulatório é globalizado e a falta de um posicionamento pode impedir iniciativas e oportunidades junto aos investimentos internacionais, colocando nossos produtos atrás dos concorrentes. Nesse sentido, avançar, sem açodamento, é fundamental e passo importante para recuperar o protagonismo geral perdido durante os últimos 4 anos.
Com as reuniões da CJSUBIA, vimos que a IA impacta diretamente diversos setores da sociedade. O que podemos esperar para os próximos meses ou anos?
Podemos esperar, de forma sucinta, um debate acirrado no entorno da minuta de anteprojeto, com disputa ponto-a-ponto do conjunto de instrumentos jurídicos que foram esboçados ali. Os setores têm interesses diferentes na matéria, cada qual exigindo soluções jurídicas próprias. A participação, ou não, vai determinar se esses interesses irão aparecer na futura lei. Para os próximos anos, além do regramento geral, será necessário aparar as arestas de termos ambíguos e vagos postos no anteprojeto e, além disso, a efetivação de um debate multissetorial para tratar dos usos específicos da IA em cada setor - como educação, saúde, crédito etc.
Mini Bio: André Lucas Fernandes é advogado, atuando na área de direito e tecnologia, com foco em inovação, inteligência artificial, automação e proteção de dados. É doutorando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, analisando a IA no trabalho jurídico. Mestre e graduado em Direito pela UFPE. Fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife - IP.rec.
VERO INDICA
Cyberpunk: Edgerunners. Se você gosta de animes, essa já é uma dica valiosa. Agora, se você gosta de animes, distopia e debates sobre os limites da tecnologia, essa é uma dica quase obrigatória. Em uma cidade dominada pela corrupção, crime e implantes cibernéticos, um garoto chamado David, depois de perder tudo, escolhe sobreviver como um "edgerunner": um mercenário de alta tecnologia conhecido como um "cyberpunk".
Ruptura. A série mistura drama, suspense e ficção científica ao contar a história de cinco funcionários que topam participar de um procedimento experimental onde suas memórias pessoais e de trabalham se fragmentam, ou seja, eles não lembram da situação de um ambiente quando estão no outro. Quem gosta do debate sobre tecnologia e trabalho pode se interessar. Disponível na Apple TV.
Kendrick Lamar. O clipe da música “The Heart Part 5”, do rapper, impressiona pela transformação do cantor em outros artistas, como Will Smith e Kanye West. A transformação é realizada por meio da tecnologia Deep Fake.