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Regulação de plataformas agita 2022 e agenda permanece em aberto para 2023
A regulação de plataformas foi uma das agendas legislativas em maior evidência em 2022. A pauta é uma tendência marcante no debate sobre política e tecnologia.
Em 2022, vimos o principal Projeto de Lei desse segmento, o PL 2.630/2020, ser reestruturado, criticado, elogiado e, enfim, engavetado quando rejeitada sua tramitação em regime de urgência. Se o episódio esfriou o debate e impossibilitou a aprovação de qualquer legislação da área antes do período eleitoral, as declarações do presidente eleito Lula e do Presidente do TSE, Alexandre de Moraes, e as atividades dos Grupos Técnicos do Governo de Transição, indicam que a pauta será central em 2023. Como você acompanhou aqui na Descodificado, o cenário nacional e internacional têm impulsionado a agenda.
Conversamos sobre esse tema com uma autoridade no assunto, o ativista e pesquisador Paulo Rená, cuja trajetória se mistura com a do Marco Civil da Internet no Brasil. Ele faz um balanço instigante da agenda de regulação de plataformas em 2022 e apresenta suas expectativas para 2023.
Regulação de plataformas: PL 2630/2020
A tramitação do PL 2630/2020, que regula as plataformas de mídias sociais, mensageria instantânea e ferramentas de busca, passou por grandes emoções no primeiro semestre de 2022. O Projeto já vem de trajetória longa e agitada. Em 2020, passou por uma tramitação acelerada no Senado Federal, sendo posteriormente avaliado por um Grupo de Trabalho na Câmara dos Deputados que, após diversos textos, entregou a proposta no final de 2021. Já em 2022, os três primeiros meses do ano foram marcados pelas negociações em torno de seu texto. O relator do projeto, dep. Orlando Silva (PCdoB - SP), se reuniu com diversas lideranças e bancadas da Câmara, com o Poder Judiciário e com o Poder Executivo, além de ter se encontrado com a sociedade civil e especialistas. Os encontros levaram a alterações no texto do GT e subsidiaram a elaboração de substitutivo, publicado no final de março. Alguns dos pontos que se destacaram na nova versão do projeto foram os dispositivos que tratavam da remuneração de conteúdo jornalístico e da imunidade parlamentar no ambiente digital, gerando debate nos diferentes setores. Em particular, a proposta de extensão da imunidade parlamentar constitucional para a Internet foi enfaticamente criticada pela sociedade civil.
Com o texto pronto, e com a proximidade das eleições, a expectativa era a aprovação de sua urgência e imediata apreciação em Plenário. No entanto, o requerimento do relator foi rejeitado. Com isso, o mérito da proposta não foi analisado e a tramitação permanece paralisada desde então.
De acordo com especialistas, as articulações do Governo Federal e das empresas de tecnologia contra o texto final foram os principais motivos da rejeição da urgência. Apesar disso, o PL, e sobretudo o debate em torno dele, permanecem como possíveis referências para o próximo ano.
Internacionalmente, a pauta caminhou de forma mais definitiva, com repercussões também no cenário brasileiro. Em julho, o parlamento europeu aprovou duas legislações que incidem diretamente no tema: o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA), com prerrogativas referentes à definição de regras, direitos e obrigações de transparência, accountability e operação das empresas do setor de mercados digitais. Apesar de terem sido elaboradas dentro do contexto da União Europeia, elas devem se tornar parâmetros para outros países. Frances Haugen, a ativista e whistleblower do Facebook, apontou a importância das diretivas quando esteve no Brasil e participou de Audiência Pública.
Passada a eleição de 2022 e já sem o protagonismo do PL 2.630/2020, o tema da regulação parece ter entrado na agenda do novo Executivo eleito. A menção à necessidade de se regular as plataformas foi frequente nos discursos do presidente eleito, Lula (PT), e de figuras como o Ministro Alexandre de Moraes, que defendeu a apresentação de um PL sobre o tema. Bem recentemente, na cerimônia de diplomação, Lula chegou a ressaltar a relevância de uma legislação internacional de combate à desinformação em plataformas digitais. No Grupo Técnico (GT) de Comunicações, a pauta da regulação também ganhou centralidade, como indica a fala do ex-ministro das Comunicações e integrante do GT, Paulo Bernardo, em entrevista sobre o tema.
Atualmente, a disputa pelo tema permanece forte, porém, também no Legislativo, com destaque para novos Projetos de Lei como o PL 2.768/2022.
As diversas fases de tramitação do 2.630/2020 e a quantidade de atores envolvidos no debate demonstram a complexidade do tema e a continuidade da agenda para 2023. Você acompanhará tudo aqui na Descodificado, como de costume.
Paulo Rená, Co-diretor do Aqualtune Lab, integrante do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e assistente jurídico no Tribunal Superior do Trabalho.
A regulação de plataformas no Brasil já possui um histórico de debates, por exemplo o PL 2.630/2020, com Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados, e as discussões iniciadas pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Como você enxerga esse tema e esses debates no atual cenário brasileiro?
O histórico no Brasil sobre regulação de plataformas digitais pode ser recuperado pelo menos até o caso da determinação judicial de bloqueio do YouTube, em 2006. O auge até o momento me parece terem sido os debates do Marco Civil da Internet, entre 2009 e 2010. Esse diagnóstico demonstra ao mesmo tempo pioneirismo e estagnação. Muito pouco se aprofundou desde então. O binarismo entre serviços de conexão à Internet e serviços de acesso a recursos online foi fundamental para estruturar nossa legislação, mas ele deve ser desenvolvido e ganhar mais granularidade para poder continuar a dialogar juridicamente com a dinâmica da tecnologia. O projeto de lei 2.630/2020 ganhou força em um momento errado, de pandemia; tinha um foco errado, no enfrentamento à desinformação no contexto eleitoral e como arma partidária; e carecia de mais consistência conceitual, pois confundia definições e traçava distinções incoerentes. Esse contexto permitiu que muitos setores atuassem de modo oportunista, buscando satisfazer seus interesses, com o falso pretexto de disciplinar o enfrentamento ao discurso de ódio ou a defesa da democracia. Mesmo assim, a urgência do debate era tanta, que o PL avançou e conseguiu movimentar o tema no Brasil. Penso que o importante agora seja virar a chave reativa, adotarmos uma postura mais propositiva e retomar o protagonismo brasileiro nessa temática.
O que você destaca como fundamental no debate sobre regulação de plataformas? Quais pontos indispensáveis devem estar presentes em uma futura legislação?
Acho crucial entender que o cenário é de um ecossistema diverso e altamente fluido, que não vai se deixar limitar por restrições jurídicas nacionais autoritárias. O grande desafio é o de afirmar os direitos, assegurar remédios efetivos para quem sofrer lesões e ameaças, sem tentar remodelar a natureza da Internet. Essa harmonia precisa de uma abordagem muito complexa, que saiba combinar regras para elementos estruturantes e para circunstâncias passageiras. Penso que o primeiro passo seja pensar um critério basilar para distinguir as empresas e organizações que sejam destinatárias das normas jurídicas, e minha sugestão é que seja pelo tipo de serviço, e não pelo tamanho do faturamento ou quantidade de usuários. Mas o importante é debater, colocar em cima da mesa os argumentos e realizar uma conversa pública, transparente e construtiva.
Tratamos aqui na Descodificado como o governo de transição tem frequentemente falado sobre o assunto. Na sua opinião, há expectativa de que o tema seja discutido pela próxima gestão? Qual a perspectiva geral para o ano de 2023?
O principal é considerar que o governo federal volta a ser um interlocutor razoável, para quem poderemos direcionar nossas demandas com a expectativa real de sermos ouvidos e podermos dialogar em busca do que for melhor para o Brasil. A sociedade civil, a academia, as empresas voltam a ter no país um contexto propício à regulação democrática da Internet. Dito isso, haverá muita disputa de perspectivas, muito dissenso e muita controvérsia. Mas esse é o cerne da democracia, a convivência da divergência e a busca pelos consensos possíveis. O ano de 2023 deve ser um primeiro ano de reconstrução, de restabelecimento dos canais e de renovação dos espaços de discussão.
Paulo Rená da Silva Santarém é ativista, pesquisador, professor universitário e servidor público federal. Doutorando em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília; é co-diretor da ONG Aqualtune Lab; integrante do projeto Comunicações Privadas, Investigações e Direitos no Instituto de Referência em Internet e Sociedade; e assistente jurídico no Tribunal Superior do Trabalho, tendo atuado entre 2009 e 2010 na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, como gestor do projeto de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet no Brasil.
VERO INDICA
Som na faixa. A minissérie da Netflix mistura documentário e ficção ao retratar a história de criação da plataforma musical Spotify, trazendo também o debate sobre os impactos do streaming no mundo da música.
Snowden. O filme retrata a história de Edward Snowden, o ex-funcionário da Agência de Segurança dos EUA que divulgou para o mundo documentos sigilosos de atos de espionagem pelo governo estadunidense, inclusive de líderes mundiais, como a então presidente brasileira Dilma Rousseff. O caso emblemático impactou profundamente o debate sobre Internet, influenciando a aprovação do Marco Civil da Internet. Disponível no Star+.