Eleições 2022 acirram debate sobre Internet e política e deixam legado para 2023
2022 foi ano de definições importantes em âmbito nacional. As eleições gerais foram a pauta central de boa parte das edições aqui da Descodificado. Entre regras eleitorais e medidas de combate à desinformação, com centralidade para a atuação do Tribunal Superior Eleitoral em meio a esse processo, vários acontecimentos de 2022 reforçaram a forte presença da Internet na política brasileira, especialmente em contexto eleitoral.
A próxima eleição brasileira é só em 2024, mas as agendas abertas pelo pleito deste ano deverão ter repercussão já durante o próximo ano, com debates sobre o Novo Código Eleitoral e os preparativos para as eleições municipais. Para analisar retrospectivamente as eleições mais acirradas da história brasileira e apresentar expectativas para 23, tivemos o prazer de entrevistar a especialista Samara Castro, advogada e Presidente da Comissão de Liberdade de Expressão no mundo digital da OAB/RJ. Nesta edição, trazemos também a seção Vero Indica, com recomendações culturais para o final de ano.
Eleições Gerais, TSE e plataformas digitais
Quatro anos após as eleições de 2018, o tema da desinformação voltou a ser o principal assunto quando falamos em eleições gerais. Em novembro do ano passado já havíamos noticiado sobre as primeiras medidas do TSE contra a desinformação, como o caso da cassação e inelegibilidade de Francischini e as resoluções de novembro de 2021.
Para além disso, o ano foi marcado pela consolidação e execução do Programa Permanente de Combate à Desinformação do TSE, com o fechamento de novas parcerias após o início da iniciativa em 2019. Em setembro, o Programa venceu prêmio internacional instituído pela Rede Mundial da Justiça Eleitoral (RMJE), na categoria “Processos Eleitorais em Situações de Emergência”.
A estratégia do TSE de formalizar acordos e contatos com as plataformas digitais esteve também no cerne de uma das pautas mais quentes do ano: o anúncio de bloqueio do Telegram em março e toda a novela que se desenrolou a partir daí. O bloqueio foi decretado em decisão do Ministro Alexandre de Moraes sob a justificativa de falta de cooperação da plataforma em obedecer ordens judiciais de suspensão das contas do blogueiro extremista Allan dos Santos, mas foi revogado após a empresa acatar, dentro do prazo estipulado, as determinações da Corte.
A atuação da Corte continuou a plenos vapores ao longo do ano. Como parte dos preparativos para o pleito, a Justiça Eleitoral lançou um sistema de alerta de desinformação eleitoral e disparo em massa, além de fortalecer a divulgação do aplicativo Pardal, mais direcionado para denúncias sobre candidaturas. Ambos os sistemas operaram durante as eleições e o Pardal bateu recordes de denúncias recebidas. Outra iniciativa neste âmbito foi o relançamento do chatbot do TSE no WhatsApp. Como parte da parceria do Vero com a Corte no âmbito do Programa de Enfrentamento à Desinformação, lançamos o projeto Confirma, no qual produzimos materiais ilustrativos e informativos sobre eleições e Internet que alimentaram a ferramenta.
Os exemplos ilustram outra grande pauta do pleito eleitoral, agora no âmbito das remoções de conteúdo online por decisão judicial. As representações de coligações se tornaram corriqueiras, como documentado pelo Observatório da Desinformação nas Eleições de 2022 (FGV/CEPI), e colocaram em teste os acordos previamente firmados e a capacidade de ação do TSE. Aqui na Descodificado, destacamos decisões como as relacionadas à live do então presidente Bolsonaro (PL) com embaixadores, pela divulgação de desinformação eleitoral. O assunto deve voltar à tona na retomada da discussão sobre regulação de plataformas no país.
Logo após o primeiro turno, no entanto, a efetividade das medidas de combate à desinformação firmadas entre as plataformas e o TSE foi colocada em xeque. Nas 48h antes do primeiro turno e a partir dele, o cenário da desinformação nas redes mudou drasticamente e o que parecia controlado, saiu de controle. Tal cenário levou o Tribunal a adotar novas medidas, como foi a controversa resolução normativa para aumentar seus poderes de fiscalização para obrigar as plataformas a removerem os conteúdos desinformativos com maior rapidez e, por extensão, obrigar a remoção de conteúdos semelhantes em outras URLs. A Corte já tinha se reunido com as plataformas digitais para cobrar maior agilidade na resposta às decisões judiciais e publicou a resolução logo na sequência, a 10 dias do segundo turno.
A atuação da justiça eleitoral e das plataformas em 2022 consolidaram uma bagagem a ser levada para o debate no ano que vem. Quais medidas foram efetivas? O que deve ser aprofundado e o que pode ser incluído em novas legislações? São perguntas a serem observadas. A retrospectiva do ano e o caso brasileiro das eleições de 2022 apontam para os desafios e possibilidades mundialmente colocados para a relação entre Internet, democracia e eleições, tendo movimentado o debate entre os diferentes setores envolvidos na pauta. Com a intensa atuação de 2022, o tema da desinformação na política e as atividades do TSE e das demais autoridades públicas envolvidas, por exemplo, no debate quanto ao Novo Código Eleitoral, devem estar em alta.
Samara Castro, advogada, Presidente da Comissão de Liberdade de Expressão no mundo digital da OAB/RJ e membro da ABRADEP, Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.
Com as Eleições Gerais e os desafios inéditos que surgiram nesse contexto, o ano de 2022 foi muito intenso para os órgãos eleitorais. Diante disso, como você avalia a atuação do TSE?
A Justiça Eleitoral exerce funções heterodoxas. Enquanto sua principal função é a organização das eleições e a garantia da integridade do processo de decisão democrática é também da JE a responsabilidade de por meio dos seus tribunais processar e julgar as ações. Além disso, ela ainda possui a função consultiva e a normativa, sendo que o TSE tem competência para expedir atos normativos e resoluções para regulamentar a legislação eleitoral. Desse modo, o Tribunal atuou de maneira exemplar ao fazer uma defesa intransigente da integridade do processo eleitoral. A Resolução 23.714/2022 expedida no segundo turno das eleições permitiu o exercício mais eficaz do seu poder de polícia além de uma atuação mais diligente no combate à desinformação e ameaças democráticas. Vale destacar ainda que o TSE construiu uma base sólida para lidar com o desafio da desinformação. A criação de uma assessoria especial de combate à desinformação, a permanente capacitação dos servidores e a troca de experiências internacionais foram fundamentais para a atuação altiva do Tribunal nas eleições mais desafiadoras que já enfrentamos. Por fim, o Tribunal garantiu eleições seguras e mais representativas ao vedar a utilização e transporte de armas por CAC's, garantir passe livre para os eleitores e punir o assédio eleitoral.
Como você enxerga o próximo ano, 2023? Qual é a expectativa acerca do trabalho da Justiça eleitoral?
Nos chamados anos ímpares, ou seja, aqueles anos não eleitorais a Justiça Eleitoral precisa lidar com todo o trabalho gerado no ano anterior, seja com o julgamento das contas, seja com o processamento das Ações de Investigação Eleitoral e Ações de Impugnação de Mandato Eletivo. Ambas têm o condão de eventualmente cassar mandatos e imputar inelegibilidade de eleitos e não eleitos. Em 2023 a JE terá o desafio adicional de dar tratamento devido às condutas de ataque à integridade eleitoral, ameaças à democracia e suas instituições. Assim como em anos anteriores é possível que das decisões dos tribunais eleitorais sejam extraídos entendimentos sobre como responsabilizar a difusão orquestrada de desinformação com o objetivo de gerar instabilidade e pânico. É fundamental que essa discussão seja feita de forma séria sob pena de cair em descrédito a legislação eleitoral e a própria justiça eleitoral caso permaneça a impunidade de condutas tão gravosas como as que vivenciamos nas eleições de 2022.
Existe um debate em torno de um possível Novo Código Eleitoral, que atualmente encontra-se paralisado no Senado Federal. Quais os principais pontos desse debate? Ele deve evoluir em um futuro próximo?
A ideia de um Novo Código Eleitoral que reúna toda a legislação esparsa em um único lugar é promissora. Infelizmente em 2022 presenciamos um interregno no qual nem um Novo Código estava pronto, nem a tradicional minirreforma foi possível. O resultado foi a necessidade de enfrentar eleições desafiadoras com uma colcha de retalhos normativa. O texto que está no Senado Federal avança em diversos pontos e permite uma maior coerência da legislação eleitoral. Além disso, ele apresenta bases importantes para o direito processual eleitoral. Todavia diante da experiência das eleições de 2022 precisaremos aperfeiçoar o texto no que diz respeito ao papel das plataformas e seus sistemas de recomendação, aos anúncios político eleitorais, ao financiamento dos canais hiperpartidários e sua atuação nas eleições, bem como a possibilidade de atuação das organizações da sociedade civil, a necessidade de passe livre em todos os turnos e as responsabilidades do Ministério Público Eleitoral. Seja qual for a decisão do Congresso Nacional sobre o futuro do Novo Código Eleitoral é certo que precisamos de uma legislação robusta e coerente para lidar com os novos desafios que ultrapassam o dano local de eventual abuso de poder e podem permitir um dano permanente ao próprio regime democrático e ao estado de direito.
Mini Bio: Samara Castro. Advogada. Presidente da Comissão de Liberdade de Expressão no mundo digital da OAB/RJ. Coordenadora de Comunicação da ABRADEP - Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político. Membro do Observatório Eleitoral da OAB/RJ. Vice Presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RJ. Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
VERO INDICA
"Pela Internet", Gilberto Gil. Do álbum “Quanta” (1997), a canção é um dos grandes destaques culturais do olhar brasileiro sobre a Internet na década de 90. Gil cantou a conexão global e a expectativa de debate mundial por meio da Internet. No refrão, ele destaca: “Eu quero entrar na rede, Pra manter o debate, Juntar via Internet, Um grupo de tietes de Connecticut”. Pensar em eleições, hoje, é pensar em conversa, conteúdo, debate e desinformação pela Internet. E aí, o que esperar das próximas eleições conectadas?
"The Last Days of New Paris", China Mieville. O livro ficcional do escritor britânico China Mieville é ambientado na Paris da Segunda Guerra Mundial e mistura arte, liberdade de expressão e radicalização política. A narrativa explora os conflitos políticos da Resistência Francesa contra grupos nazistas em uma atmosfera surrealista, com a participação de artistas nesse combate e a materialização da arte surrealista.