Panorama do debate sobre regulação de plataformas e Inteligência Artificial em 2023 no Brasil
O ano de 2023 chegou ao fim, e a Descodificado não poderia deixar de trazer os principais acontecimentos sobre tecnologia e política. Para a primeira edição do ano, escolhemos fazer uma retrospectiva sobre dois temas que movimentaram a agenda digital no ano passado: regulação de plataformas digitais e de Inteligência Artificial (IA).
A regulação de plataformas teve grande repercussão no início de 2023, mas esfriou nos últimos meses. Por outro lado, o debate de IA se intensificou no 2º semestre com a instalação da Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA) no Senado.
Regulação de Plataformas
O 1º semestre de 2023 começou movimentado na pauta de regulação de plataformas. Em resposta aos atentados de 8 de janeiro em Brasília, uma série de determinações judiciais foram direcionadas para plataformas digitais, requerendo remoção de conteúdo, derrubada de grupos e identificação de perfis dos envolvidos no ato. O papel desempenhado por essas plataformas tornou-se objeto de debates, sob o argumento de que foram instrumentalizadas para viabilizar os ataques.
Os eventos que se seguiram intensificaram o debate. No final de março, uma onda de ataques às escolas abalou o Brasil, muitos deles planejados por meio de redes sociais e serviços de mensageria. Em reação, autoridades públicas defenderam a expansão da responsabilização das plataformas pelos conteúdos que circulam. O MJSP, por sua vez, promoveu um encontro com as principais plataformas digitais e editou uma portaria com regras severas para as redes sociais. Já a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e o Ministério Público Federal (MPF), individualmente, exigiram das empresas um relatório com as medidas adotadas para monitorar e moderar os conteúdos relativos a violência nas instituições de ensino.
Cabe comentar também a retirada do ar do aplicativo Telegram, após descumprir ordem judicial que solicitava dados de grupo com conteúdos neonazistas que estavam sendo investigados no âmbito dos ataques às escolas.
Na Câmara, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) sobre a Política de Combate à Violência nas Escolas Brasileiras que aprovou um relatório final em novembro de 2023, propondo, entre outros pontos, alterações no MCI e na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
PL 2630/20 na mira do Governo
Os ataques às sedes dos Três Poderes e a onda de violência nas escolas trouxe o PL 2630/2020 de volta à pauta, ganhando atenção em especial do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República. Em março, o Governo entregou um conjunto de sugestões para o PL 2630/20 ao relator da proposta, deputado Orlando Silva (PCdoB/SP) e que previam, dentre outros pontos, a expansão das exigências de transparência e a inclusão do dever de cuidado.
Votação de urgência aprovada, mas de mérito frustrada
No final de abril, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o PL 2630/20. A aprovação veio acompanhada da publicação de uma nova versão da proposta, apresentada pelo relator, que vinha negociando o texto para garantir o apoio dos parlamentares. Entre os pontos do novo relatório, cabe comentar a inclusão de dispositivo sobre a liberdade religiosa, buscando atender a Frente Parlamentar Evangélica, e a supressão de referências à “entidade autônoma de supervisão”. Quanto ao órgão de supervisão, é importante mencionar a disposição da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) de assumir o papel, opção criticada pela sociedade civil, e a sugestão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que cria um sistema regulatório de plataformas tripartite.
Considerando um acordo político realizado à época, a urgência criou grandes expectativas de uma votação do projeto na semana seguinte, o que infelizmente não aconteceu. Em forte oposição ao PL, as plataformas movimentaram as redes numa campanha contra a votação do projeto. O Google, por exemplo, incluiu um documento na sua tela inicial, afirmando que a proposta poderia "impactar a internet que você conhece" e “aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil”. A falta de apoio e de atuação ativa de partidos aliados ao Governo também contribuiu para o adiamento da votação de mérito.
Outro desdobramento do adiamento do PL foi a liberação para julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do Recurso Extraordinário que debate a responsabilidade civil das plataformas, prevista no art. 19 do Marco Civil da Internet (MCI). O tema já tinha sido tema de audiência pública na Corte em março. O julgamento, no entanto, ainda não ocorreu.
A chegada da proposta fatiada do PL 2630/20
Em busca de acordo entre os parlamentares, no final de maio, o PL 2370/2019 ganhou visibilidade e ficou conhecida como a “proposta fatiada do PL 2630/20” após receber os temas de remuneração de jornalismo e direitos autorais, anteriormente debatidos na proposta que pretendia regulamentar as plataformas. O PL foi alvo de tentativas de votação de urgência no 1º e 2º semestre, porém, todas frustradas. Com isso, o PL 2.630/20 restou travado, sob o entendimento de que encontrava-se vinculado ao PL 2370/19 devido ao repasse das temáticas. A última tentativa de votação da proposta fatiada ocorreu em agosto.
Em outubro, o PL recebeu um novo relator, o deputado Fred Linhares (Republicanos/DF) que indicou ser contra a urgência do texto. No mesmo mês, a pedido do novo relator, a Comissão de Comunicação promoveu debate sobre a proposta, mas, desde então, não aconteceram novas movimentações.
Inteligência Artificial
O ano de 2023 foi marcado por um acelerado desenvolvimento dos sistemas de Inteligência Artificial (IA), em especial da IA generativa, como o chat GPT.
IA no legislativo
Apesar da intensa agenda de debates sobre o tema no país, o tema só avançou no legislativo a partir do 2º semestre. Em agosto do ano passado, o Senado Federal instalou a Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA) com objetivo de debater as propostas legislativas acerca do tema. Foram eleitos para coordenar a Comissão os senadores Carlos Viana (Podemos/MG), na qualidade de presidente, e Marcos Pontes (PL/SP), como vice-presidente. À época, acabava de ser apresentado, no início de maio, o PL 2338/2023, com objetivo de regular o uso da tecnologia, fruto dos debates multissetoriais e multidisciplinares da Comissão de Juristas responsável por subsidiar a elaboração de substitutivo sobre Inteligência Artificial (CJSUBIA) do Senado.
O relatório da CJSUBIA tem tanta importância que a 1ª audiência da CTIA, realizada em outubro de 2023, teve como objetivo debater o documento. Figuras importantes como a relatora e o membro da Comissão, respectivamente Laura Schertel e Fabrício Mota, estiveram presentes. A partir daí, foram realizadas uma série de 9 audiências públicas que se estenderam até o dia 1º de novembro e contaram com a participação de mais de 60 convidados das esferas privada e pública e do terceiro setor. Os debates buscaram aprimorar os impactos da tecnologia em temas específicos como cibercrimes, eleições e setor acadêmico, além de discussões como abordagens regulatórias e principiológicas.
Após a sequência de audiências, Pontes, vice-presidente do colegiado, apresentou uma emenda substitutiva ao PL 2.338/23 que, até o presente momento, encontra-se pendente de análise pelo relator, senador Eduardo Gomes (PL/TO). Dentre os pontos principais, o texto propõe a indicação de uma autoridade para fiscalizar o uso da tecnologia, cria o Conselho Nacional sobre Inteligência Artificial (CNIA) e dispõe sobre regimes de responsabilidades.
Inicialmente, a Comissão possuía prazo de funcionamento até meados de dezembro, no entanto, esse prazo foi prorrogado até 23 de maio deste ano.
Cabe comentar também sobre a Subcomissão Especial sobre Uso da IA, que apesar de não ter tido grandes movimentações até o momento, foi criada em novembro pela Comissão de Cultura da Câmara, com objetivo de debater os limites legais e éticos para o uso da tecnologia. A coordenação do colegiado ficou à cargo da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), como presidente, e do deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade/RJ), como vice-presidente.
A polêmica da IA na segurança pública
Outro acontecimento que teve grande impacto no campo da IA foi o Programa Smart Sampa, que pretende instalar 20 mil câmeras de reconhecimento facial pela cidade de São Paulo. Diversas movimentações acerca do tema foram realizadas, como a audiência pública da campanha #TireMeuRostodaSuaMira, que visa o banimento do uso de reconhecimento facial da segurança pública, junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Apesar dos esforços, em maio, o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou a decisão que havia suspendido a compra das câmeras e, consequentemente, em agosto, o programa foi iniciado. O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) emitiu recomendação, em outubro, pela suspensão da tecnologia.
O que esperar de 2024?
O ano de 2023 foi palco de debates acalorados acerca da regulação de tecnologias, abrangendo desde a atuação das plataformas até os avanços significativos no campo da inteligência artificial. A perspectiva é que essas discussões persistam ao longo de 2024, entrelaçando-se com preocupações sobre as eleições, que ocorrerão em âmbito municipal neste ano.
Na próxima edição, apresentaremos as expectativas dos desdobramentos destes temas para 2024, sob o olhar de Cynthia Picolo e Diogo Rais.
Fiquem atentos!